.#INTRODUÇÃO A UMA CRÍTICA DA LITERATURA POP
por Daniel Mojo Pellizari
Literatura pop: nos últimos meses um quinhão da internet
brasileira foi tomada de assalto por este termo. Servindo de
rótulo para um conjunto de textos veiculados em websites e
e-zines (inclusive com algumas aparições no COL), é um
material que de certa forma apresenta uma unidade estética e
temática, mas que pode ser dividido em dois grupos genéricos
a partir da análise dos trabalhos de cada autor.
Em primeiro lugar vêm aqueles que de modo algum estão
fazendo literatura. Sendo um meio de comunicação cujo
suporte principal ainda é o texto escrito, a internet
obviamente estimula seus usuários a se expressarem desta
forma e até a explorarem técnicas até então deixadas de
lado, como a narrativa de ficção. Se por um lado isso traz
algumas vantagens que fogem a esta discussão, por outro
também cria aberrações, como o surgimento de uma horda de
"escritores pop". São autores de textos muito semelhantes
entre si, que utilizam quase exclusivamente o narrador em
primeira pessoa, com virtual ausência de conflito ou
subtexto. Estas características visivelmente não são
motivadas por decisões técnicas, mas por puro
desconhecimento dos mecanismos e truques de uma boa
narrativa. A primeira constatação que vem à cabeça ao ler
esses textos é óbvia: falta leitura a seus autores. E, se
existe uma verdade neste mundo, é o fato de que é
praticamente impossível alguém se tornar um bom ficcionista
sem possuir uma carga considerável de leitura. É como querer
ser músico sem ter o hábito de escutar música. Poucos gênios
são capazes de um feito semelhante, e no mundo literário da
internet em língua portuguesa ainda não apareceu gênio
algum, apesar de muitos autores serem excelentes. Sem
leitura o autor não tem referências, e um autor de ficção
sem referências não passa de um amador. Os próprios beats,
que criaram uma literatura verdadeiramente pop sem perder a
qualidade artística, eram leitores vorazes, assim como
Charles Bukowski, que pessoas desavisadas podem considerar
um tosco, mas que era muito consciente dos processos
narrativos que utilizava. Isso não se aplica a este grupo de
autores, e um dos resultados dessa deficiência é o fato de
que muitos destes textos se apresentam como contos, mas não
passam de simples relatos. Sâo válidos como fonte de
satisfação pessoal, catarse (como no caso dos diários
pessoais ou sua forma pós-moderna, os weblogs) ou até mesmo
exercícios de iniciação literária, na melhor das hipóteses.
Mas, no fundo, é apenas diletantismo. Ser autor de um texto
desses e sair por aí se dizendo escritor e acreditando que
se está fazendo literatura - mesmo "pop" - é de um exagero
quase caricato. Muitas pessoas têm dificuldades em entender
(ou resistência em aceitar) que a literatura é uma arte com
regras e técnicas específicas, que todo escritor deve
conhecer e se possível dominar, mesmo que seja para quebrá-
las. São essenciais para seu trabalho, na mesma medida que o
talento - com a diferença de que esse é inato e não tem como
ser obtido através de estudo e prática. Sem método ou um
anti-método - que exige conhecimentos do método -, não há
literatura.
Mas existe outro grupo de autores da literatura pop de
internet que produz textos que possuem características
literárias, em maior ou menor escala. É visível que estes
realizam seu trabalho de uma maneira mais consciente, mas
mesmo assim, com algumas exceções (como, por exemplo, Indigo
e Gustavo Fischer), ainda não apresentaram um conjunto de
textos que tenha consistência ou qualidade digna de nota.
Existe uma espécie de "despretensão pretensiosa" neste grupo
de autores, o que, junto com semelhanças temáticas, cria um
paralelismo entre eles e a segunda e terceira geração do
romantismo brasileiro. Apesar de (ainda) não ter surgido um
autor de literatura pop que faça uso da poesia como
linguagem, está tudo ali: a subjetividade extremada, as
primeiras pessoas, o "amor" como tema dominante (e a sua
impossibilidade surgindo com freqüência), personagens
masoquistas, de uma passividade quase bovina, isso sem falar
em uma estrutura muitas vezes folhetinesca (utilizada sem
fins satíricos ou paródicos). Não é necessária uma análise
muito profunda para constatar que não há muita diferença
entre os textos desses autores e muitos dos folhetins
românticos publicado neste país no século retrasado, e
existem semelhanças até mesmo com os livrinhos de "histórias
de amor" vendidos em bancas de jornal. Praticamente mudam
apenas as referências culturais e diversas características
sociais, mas a psicologia dos personagens é extremamente
semelhante, ainda que não se tenha visto um personagem de
literatura pop morrer de amor -mas eles chegam quase lá.
Sendo assim, o que chamam de "literatura pop" poderia ser
chamado de "neo-romantismo", ou de "quarta geração tardia".
Como se sabe, o romantismo não é conhecido exatamente pela
excelência literária, apesar de ter sido importante dentro
de seu contexto histórico. Mas o que pensar de um
"movimento" que o ressuscita e o recauchuta para consumo
rápido no início do século XXI? O problema está nos autores
que o representam, ou eles apenas estão cumprindo seu papel
de escritores e refletindo uma espécie de período emocional
regressivo da sociedade ocidental?
Pode-se afirmar que a maioria destes autores não está
pretendendo criar nada além de puro entretenimento. Até aí,
nada de errado, apesar de muitos deles esquecerem que até
para simplesmente se contar uma boa história é necessário
saber contá-la, ou seja, ter intimidade com o meio que será
usado como suporte. Certamente deve-se levar em consideração
o fato de que a maioria destes autores está se iniciando na
prática da narrativa, e que são apenas vítimas das
facilidades de publicação oferecidas pela internet. Este é
um dos fatos que dá pertinência a este texto. Se por um lado
Goethe foi capaz de perpetrar um Werther na juventude, por
não mais que pura falta de crítica, mais tarde teve a
lucidez de lhe renegar qualquer relevância. Também é
possível considerar que estes autores estão realizando uma
espécie de crônica despretensiosa acerca de um determinado
segmento social de uma geração. O problema é que se está
perdendo uma boa oportunidade de utilizar a ficção como
instrumento de crítica e análise. Não podemos perder de
vista que a literatura é uma forma de arte, e como tal deve
possuir algum mérito estético aliado a um mínimo de
questionamento sobre a experiência humana. A iniciativa de
se tentar criar uma literatura pop, apesar de não ser
inédita e revelar um certo desconhecimento sobre a história
da literatura, é digna de respeito - principalmente no
Brasil, um país que por diversos motivos ainda trata o
ofício de escrever com uma reverência exagerada, beirando a
mitificação. Mesmo assim, isso não é motivo para tratar a
matéria de forma quase niilista, perdendo todas as
referências sobre a arte literária, seu método e seu
potencial de causar reflexão. Nem tanto, nem tão pouco.
Quando teve suas formas eruditas e populares adequadas à
indústria cultural, a música não perdeu necessariamente suas
características de arte: o jazz seria o melhor exemplo se a
história do rock não pudesse fornecer provas ainda mais
contundentes. O problema é que a maior parte da "literatura
pop" produzida neste país e divulgada na internet tem mais
pontos de contato com o pagode romântico, a música enlatada
e as boy bands do que com as formas citadas anteriormente.
Trata-se do pop do pop, um produto kitsch e sentimentalóide,
o rebotalho da indústria cultural.
Muito alarmante e sintomático é o fato da literatura pop de
internet ser extremamente descartável, mesmo para um
"estilo" que se anuncia como imediatista e sem grandes
pretensões de perenidade. A maioria dos textos, além de
demasiadamente planos, não possuem qualquer germe de
estranheza ou questionamento, servindo como uma espécie de
espelho onde o leitor encontra algum tipo de consolo. Sendo
a literatura, assim como as outras artes, um instrumento de
reflexão, não pode ser reduzida a um coro de contentes sem
perder suas qualidades criativas e seu potencial
transformador. Bons contos, romances e novelas devem fazer o
leitor questionar ou ver de formas diferentes a si mesmo e
às realidades que o cercam, ou não passam de um agrupamento
estéril de frases bem-colocadas, onde o leitor pode se
reconhecer facilmente para esquecer em seguida e voltar à
sua rotina sem grandes sobressaltos. A boa literatura deve
surpreender o leitor, intrigá-lo, quebrar suas expectativas,
e não simplesmente dar-lhe o que deseja, acredita e já
conhece, reforçando seus conceitos e preconceitos e, no caso
do neo-romantismo, seu conservadorismo, sua superficialidade
que beira o fútil, seu egoísmo, seu consumismo, sua
passividade, seu narcisismo e sua lamentável castração
emocional. Vazia em questionamentos sobre a sociedade de
consumo, a "literatura pop" tende a mediocrizar o leitor,
consolidando uma visão de si mesmo como apenas um consumidor
vitimizado, sem capacidade de reação. Mesmo que isso seja
apenas um reflexo do estado psicológico de um setor de nossa
sociedade, como considerei anteriormente, e principalmente
neste caso, a literatura deveria servir como instrumento de
contraste, e não de confirmação. Mesmo que o autor trabalhe
com a identificação entre personagem e leitor, deve haver
sempre espaço para o estranhamento, pois é dele que nasce a
capacidade de fazer, como disse William Burroughs, com que o
ser humano enxergue o que não está vendo, e a partir daí
tome atitudes.
Fruição estética, estímulo da imaginação, visão crítica,
transformação interior, reconstrução do mundo. Este é o
papel da boa arte. Nada impede que sejam usados elementos da
indústria cultural como referências na sua produção, pois
não faltam exemplos para demonstrar que isso é até saudável
e pode lhe conceder maior potencial crítico. O problema está
em submeter a literatura por completo à lógica dessa
indústria, a ponto de coisificar a obra literária até fazê-
la virar simples produto, transformando em pura fonte de
distração o que deveria prover interação com o mundo, a
sociedade e seus significados. Não é uma questão de ser
contra a literatura pop de internet, mas sim de combater a
má literatura onde quer que ela surja. Não é uma questão de
ser contra o sentimentalismo, mas sim de promover a
dignidade. Não é uma questão de ser contra o entretenimento
puro, mas sim de recuperar o papel revolucionário da arte.
Precisamos de obras que nos fortaleçam e nos tornem mais
capazes de analisar, compreender e modificar o mundo em que
vivemos, não de simples produtos que nos deixem conformados
e incapazes de mudar coisas mínimas como nossa capacidade de
lidar com frustrações. É este o caminho que qualquer um que
esteja se iniciando ou se aperfeiçoando em alguma forma de
arte deveria seguir. Ou queremos mesmo viver e ser lembrados
como uma geração de bundões?
Na realidade, a arte situada entre o
mundo do bom gosto e o mundo do
sentimentalismo não pode desempenhar
a função social. Torna-se instrumento
de alienação.
-jayme paviani, 'estética mínima'
---dani .el mojo. pellizzari